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12/03/12

DOR TRANSFORMADA - Jefferson da Fonseca Coutinho - Estado de Minas

Rede de apoio ajuda famílias a lidar com o luto Guimarães Rosa (1908-1967) tratou a morte como "encanto". Rosiano, "encantou-se". Da vida, uma única certeza: esse tal encantamento. O fim de tudo para muitos é apenas pedaço do viver para alguns. Se a maioria das pessoas prefere não tocar no assunto, há histórias fortes de gente que busca aprender a lidar com o início e o meio, sem se desesperar com o final.

Publicação: 11/03/2012 

Em 21 de abril de 1998, numa curva, na volta de um churrasco entre amigos em Santa Luzia, Região Metropolitana de Belo Horizonte, Camile, aos 18 anos, “se encantou”. Estava de carona, com outros três ocupantes. Lançada para fora do veículo, ela a única sem vida. O mundo em desencanto nos corações do pediatra Eduardo Carlos Tavares e da psicóloga Gláucia Rezende Tavares, pais de Camile. “Somente a certeza de sermos amados e de que nossa filha também o foi é capaz de nos dar forças para transformar a imensa dor da perda em energia criativa, em vez de depressão”, escreveu o médico em Do luto à luta, lançado em 2001, com duas tiragens esgotadas.

 Ao lado da mulher, além do livro, Eduardo deu início à Rede de Apoio a Perdas Irreparáveis (API), que em mais de 10 anos já conta com 4 mil pessoas cadastradas em Minas Gerais, no Espírito Santo e na Bahia. Muito unido desde os tempos de namoro, o casal entendeu precisar de ajuda na dor desmedida da falta de Camile. “Na nossa primeira reunião, eram apenas amigos e parentes. Todos com uma história de perda”, revela. Eduardo e Gláucia foram pioneiros na criação de uma espécie de clube do luto no Brasil, com o objetivo de unir forças e compartilhar vivências, desvinculados de qualquer crença religiosa.

 “Nossa força é muito maior que o nosso gesto. Nós não avançamos sozinhos”, diz o médico. Gláucia, a mulher companheira, estudiosa e profissional da psicologia, tem bem mais que opinião técnica sobre o luto. Mãe apaixonada, fala em “serenidade para poder lidar com os fenômenos da vida e fazer o melhor possível sempre”. A fundadora da API diz que o trabalho é também pela preservação da memória de quem partiu. Na saudade de Camile, a psicóloga buscou se fortalecer pelo bem e futuro da filha mais velha, Ivana. “Além de perder a irmã, ainda ter que conviver com os pais em pedaços… Não seria justo.”

 No apartamento do Bairro de Lourdes, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte, há uma parede com retratos da bela Camile. Um cantinho externo especial em memória da menina “encantada”. Há também a “reedição da família”, personificada numa mocinha linda de olhos brilhantes, com 1 ano e oito meses de doçura. Bárbara, a netinha, filha de Ivana, que também faz reviver Guimarães Rosa, com o desafio de ter alegria, ainda mais no meio da tristeza. Gláucia, avó coruja, ressalta a força e o significado da palavra “prosseguir”: “Seguir em prol de alguma coisa”.

Falar faz bem

Para Eduardo e Gláucia, falar de Camile é bom. É um aprender de maneira simbólica a lidar com uma nova realidade. “Terrível é quando você mata a memória. É não poder falar. O falar revive a tristeza, mas também revive o lado bom. Isso é restaurar, o que é muito diferente de superar”, diz Gláucia. Cúmplices no sorriso da saudade, pai e mãe, falam em “doces lembranças” e na satisfação de testemunhar a “restauração” de muitos participantes da Rede API. Comentam com admiração a força e a coragem de uma associada que, tempos depois de ter presenciado o assassinato do marido, teve o filho morto, também esfaqueado.

O médico, desde o princípio, não queria que a rede “se transformasse em doutrina”. Para ele, é espiritualidade. Lamenta o fanatismo que se apropria de quem está vulnerável. “Cada um tem o seu Deus e isso precisa ser respeitado.

Independentemente da religião, podemos ter Deus como uma energia amorosa para a gente continuar vivendo harmoniosamente”, diz. Gláucia chama a atenção para o fato de que não somos educados para a morte e que, às vezes, os consolos são equivocados e apresentam um “Deus terrível”, com frases prontas do tipo ‘foi porque Deus quis”. Para a psicóloga, o “encantar-se” de Rosa não é nada disso.


O estudo da morte

A Sociedade de Cuidados Paliativos e Tanatologia de Minas Gerais (Sotamig) tem ajudado muita gente a lidar com a morte. Entre os estudiosos do fim da vida física, tratado como encanto na literatura rosiana, destaca-se outro médico escritor: Evaldo A. D’Assumpção. Autor, entre outros, de Os que partem, os que ficam e de Dizendo adeus – Como viver o luto, para superá-lo. Nos dois livros, o especialista recorre à história, à ciência e à religião para fundamentar apontamentos de auxílio na elaboração do luto. As ideias do doutor palestrante foram fundamentais para o amparo de pessoas em luto de várias regiões brasileiras, além de contribuir com a formação de preceptores auxiliares.

Dentre eles, Júnia Drumond, psicóloga, desde o início dos anos 2000 mergulhada no estudo da morte e de suas consequências. Foi no papel de boa ouvinte que ela entrou na vida de  Juraci Barbosa Lima, juiz aposentado, que, em 2010, perdeu a mãe de seus três filhos. O fim da parceria de 35 anos por um câncer no intestino foi “golpe difícil” para Juraci. “Sinto muita saudade. O grande problema ainda é a solidão e o desânimo, mas sinto-me um pouco melhor.” No meio de tanta tristeza, a chegada da netinha Maria Luiza, de sete meses, para ajudar a confortar a família.

Coração partido também é o caso de Tânia Amaral de Almeida Marra, de 60. Entre namoro e casamento foram 41 anos de história ao lado do marido, José Tarcísio Marra, vitimado por doença degenerativa. Foram três anos de luta e dor relatados por Tânia, com passagens de tocar a alma: “Ele entrou com nossa filha na igreja, muito magro, já com uma cor verde… Daí em diante, os ossos dele foram se quebrando. Numa ocasião, ele me chamou e falou com muita dificuldade: ‘Tânia, será que não tem jeito de acabar logo com isso?”. Quase quatro anos passados, a viúva se mostra animada, agradecida pelo apoio vindo da tanatologia.

 Entre os reunidos no consultório de Júnia para conversar com o EM, há ainda Sueli Gomes Diniz, de 53, cheia de saudade da irmã mais nova, Roseli, morta ano passado, aos 46. Conta com tristeza que, em 20 dias, viu a familiar querida, bem casada e cheia de planos, partir, vítima de câncer decorrente de uma gravidez molar. Para Sueli, espírita, é preciso aprender a estar preparado para cruzar com as perdas irreparáveis a qualquer momento. “A vida perdeu um pouco o brilho para mim. É uma fase. Por outro lado, perdi um pouco do horror da morte”, revela.


“Não deixei de amar a Deus. O avião caiu, não é!?’’

Em 3 de maio de 1963, em São Paulo, logo depois da decolagem, o motor de um avião da Cruzeiro do Sul pegou fogo e caiu perto do aeroporto de Congonhas, matando 34 pessoas. Entre as vítimas, o engenheiro Waldemar Cardinali, 44 anos, marido de Sebastiana Leite Cardinali, a “Tita”.

Em Belo Horizonte, a mulher, mãe de quatro filhos, transformou a dor em fé. “Não deixei de amar a Deus.

O avião caiu, não é!? Uma fatalidade. Foi minha fé a minha salvação.” Em 1987, depois de longa jornada voluntária, Tita fundou a Pastoral das Viúvas, na Paróquia de São Mateus, no Bairro Anchieta, onde, uma vez por mês, se reúne com outras 14 mulheres enlutadas.

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